"Por trás da tela, nada. Apenas uma parede. Daí talvez a razão da ignorância muito difundida das coisas do cinema. No teatro, atrás do cenário começam os bastidores: atores em carne e osso surgem aos nossos olhos, desse mundo misterioso, sem dúvida, mas bem próximo. A saída dos artistas não fica longe da entrada do público. Todo amador de teatro conhece alguma coisa das manhas do ofício; sabe a importância respectiva do encenador, do decorador, do desempenho dos atores. Participa da criação do espetáculo e o julga durante os intervalos.
No cinema estamos em plena magia: na noite em que mergulhamos aparecem seres que não existem, mas em cuja história acreditamos, como se vivêssemos sem nada saber dos ritos e técnicas que os fizeram nascer. Não participamos de um espetáculo, sonhamos acordados, e, uma vez acabado o sonho, o espectador sai para a rua como alguém que acaba de acordar. Não julga o filme: gosta ou não gosta; é um pesadelo que ainda o faz vibrar ou um sonho que gostaria de poder prolongar. O próprio enredo se apaga e fica apenas no espírito uma impressão de medo, prazer ou tédio.
Os mistérios do estúdio são mais distantes e mais vedados que os dos bastidores. Suscitam também mais curiosidades e talvez mais paixão. Com que avidez o público se atira às bisbilhotices de Hollywood e aos retratos das estrelas! A publicidade soube desenvolver esse gosto por processos às vezes duvidosos e enfeitiçar o público em torno de uma verdadeira mitologia do cinema. Através dela, os artistas vivem na imaginação dos adoradores num mundo sobre-humano, com ambiente, personagens e leis próprias. É o mundo onde a modesta operária dispõe de uma cozinha equipada como um laboratório, onde a datilógrafa se torna infalivelmente estrela e onde os personagens dos filmes continuam e recomeçam na vida real as aventuras que viveram na tela. "Sullivan's Travels", filme americano, é uma sátira à lenda criada em torno da "gente do cinema". Mostra um produtor que leva à casa, para almoçar, uma extra esfaimada e sem trabalho que vagava em Hollywood à procura da glória prometida, como se sabe, a toda jovem que "quer ingressar no cinema". A primeira palavra da jovem ao entrar no vestíbulo, é: "Onde é a piscina"? Porque é sabido que todo astro ou estrela possui uma piscina particular no jardim, salas com 20 metros de comprimento e dois ou três automóveis de marcas diferentes. Cada gesto ou cada palavra desses semi-deuses é um oráculo; é preciso saber se Gary Cooper se barbeia com água quente ou fria e quais são suas opiniões sobre o futuro do mundo; se Ingrid Bergmann tempera a salada e o que pensa da vida de família. Pos trás da tela os fanáticos intoxicados por certos jornais imaginam um mundo mais artificial em mais falso que o dos filmes, mas em que acreditam mais firmemente ainda.
Esta curiosidade não é, entretanto, malsã. É até o primeiro passo para uma verdadeira cultura cinematográfica que tornaria o espectador apto a melhor compreender e melhor julgar um filme. No entanto, foi explorada pelos comerciantes do cinema numa intenção inteiramente oposta: não se trata para eles de criar espectadores conscientes e de lhes fornecer meios para julgar e preferir a obra prima ao "abacaxi"; trata-se, ao contrário, de criar adoradores de estrelas e fanáticos do mito cinematográfico que trazem sua assídua contribuição à bilheteria e à caixa, sem se preocupar com o valor do filme. O desejo de conhecer os segredos da arte deve levar, ao contrário, a melhor compreendê-la. Um amador de música deve adquirir noções elementares sobre os diferentes tons, sobre as relações da melodia e do acompanhamento. Conhece a construção de uma fuga ou arquitetura de uma sinfonia. Para apreciar um quadro é preciso estabalecer as relações entre o arabesco do desenho e o conjunto dos valores. Ouvindo um concerto ou contemplando uma paisagem, o conhecedor refaz, em parte, com o autor, o trabalho de criação: recompõe o trecho e o quadro. É preciso pensar, uma vez ao menos, em como se faz um quadro ou uma sinfonia para saborear plenamente a obra terminada. Também é necessário saber como se faz um filme para poder apreciá-lo.
Não se trata de romper a magia do cinema, de habituar o espectador a ver sempre e ao mesmo tempo o set e os bastidores. Nada mais insuportável que o espectador entendido que explica a seus vizinhos, durante a projeção, todos os truques de fabricação e não quer acreditar no "Homem Invisível". É preciso acreditar, e deixar-se levar pelo filme. (...) O cinema não é um divertimento como a prestidigitação, que só deslumbra enquanto não conhecemos o segredo de seus estratagemas. Ao contrário. Penetrando os "mistérios do estúdio" e exercitando-nos a análise de alguns filmes, descobrimos no cinema sutilezas e riquezas que escapam ao espectador ingênuo e passivo. E nem por isso se desfaz o encantamento.
Acordar nos espectadores o desejo de aprender a ver um filme, descobrindo-lhe os méritos ou os defeitos, as taras ou as belezas, é o intuito deste livro."
Prefácio do livro "Iniciação ao Cinema" - 2ª edição - 1958 - J.P. Chartiér e R. P. Desplanques - Editora Agir
No cinema estamos em plena magia: na noite em que mergulhamos aparecem seres que não existem, mas em cuja história acreditamos, como se vivêssemos sem nada saber dos ritos e técnicas que os fizeram nascer. Não participamos de um espetáculo, sonhamos acordados, e, uma vez acabado o sonho, o espectador sai para a rua como alguém que acaba de acordar. Não julga o filme: gosta ou não gosta; é um pesadelo que ainda o faz vibrar ou um sonho que gostaria de poder prolongar. O próprio enredo se apaga e fica apenas no espírito uma impressão de medo, prazer ou tédio.
Os mistérios do estúdio são mais distantes e mais vedados que os dos bastidores. Suscitam também mais curiosidades e talvez mais paixão. Com que avidez o público se atira às bisbilhotices de Hollywood e aos retratos das estrelas! A publicidade soube desenvolver esse gosto por processos às vezes duvidosos e enfeitiçar o público em torno de uma verdadeira mitologia do cinema. Através dela, os artistas vivem na imaginação dos adoradores num mundo sobre-humano, com ambiente, personagens e leis próprias. É o mundo onde a modesta operária dispõe de uma cozinha equipada como um laboratório, onde a datilógrafa se torna infalivelmente estrela e onde os personagens dos filmes continuam e recomeçam na vida real as aventuras que viveram na tela. "Sullivan's Travels", filme americano, é uma sátira à lenda criada em torno da "gente do cinema". Mostra um produtor que leva à casa, para almoçar, uma extra esfaimada e sem trabalho que vagava em Hollywood à procura da glória prometida, como se sabe, a toda jovem que "quer ingressar no cinema". A primeira palavra da jovem ao entrar no vestíbulo, é: "Onde é a piscina"? Porque é sabido que todo astro ou estrela possui uma piscina particular no jardim, salas com 20 metros de comprimento e dois ou três automóveis de marcas diferentes. Cada gesto ou cada palavra desses semi-deuses é um oráculo; é preciso saber se Gary Cooper se barbeia com água quente ou fria e quais são suas opiniões sobre o futuro do mundo; se Ingrid Bergmann tempera a salada e o que pensa da vida de família. Pos trás da tela os fanáticos intoxicados por certos jornais imaginam um mundo mais artificial em mais falso que o dos filmes, mas em que acreditam mais firmemente ainda.
Esta curiosidade não é, entretanto, malsã. É até o primeiro passo para uma verdadeira cultura cinematográfica que tornaria o espectador apto a melhor compreender e melhor julgar um filme. No entanto, foi explorada pelos comerciantes do cinema numa intenção inteiramente oposta: não se trata para eles de criar espectadores conscientes e de lhes fornecer meios para julgar e preferir a obra prima ao "abacaxi"; trata-se, ao contrário, de criar adoradores de estrelas e fanáticos do mito cinematográfico que trazem sua assídua contribuição à bilheteria e à caixa, sem se preocupar com o valor do filme. O desejo de conhecer os segredos da arte deve levar, ao contrário, a melhor compreendê-la. Um amador de música deve adquirir noções elementares sobre os diferentes tons, sobre as relações da melodia e do acompanhamento. Conhece a construção de uma fuga ou arquitetura de uma sinfonia. Para apreciar um quadro é preciso estabalecer as relações entre o arabesco do desenho e o conjunto dos valores. Ouvindo um concerto ou contemplando uma paisagem, o conhecedor refaz, em parte, com o autor, o trabalho de criação: recompõe o trecho e o quadro. É preciso pensar, uma vez ao menos, em como se faz um quadro ou uma sinfonia para saborear plenamente a obra terminada. Também é necessário saber como se faz um filme para poder apreciá-lo.
Não se trata de romper a magia do cinema, de habituar o espectador a ver sempre e ao mesmo tempo o set e os bastidores. Nada mais insuportável que o espectador entendido que explica a seus vizinhos, durante a projeção, todos os truques de fabricação e não quer acreditar no "Homem Invisível". É preciso acreditar, e deixar-se levar pelo filme. (...) O cinema não é um divertimento como a prestidigitação, que só deslumbra enquanto não conhecemos o segredo de seus estratagemas. Ao contrário. Penetrando os "mistérios do estúdio" e exercitando-nos a análise de alguns filmes, descobrimos no cinema sutilezas e riquezas que escapam ao espectador ingênuo e passivo. E nem por isso se desfaz o encantamento.
Acordar nos espectadores o desejo de aprender a ver um filme, descobrindo-lhe os méritos ou os defeitos, as taras ou as belezas, é o intuito deste livro."
Prefácio do livro "Iniciação ao Cinema" - 2ª edição - 1958 - J.P. Chartiér e R. P. Desplanques - Editora Agir
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